O Que é Geopolítica? e Geografia Política?
É frequente a confusão
entre geografia política e geopolítica, que na verdade são imbricadas, se sobrepõem
em grande parte, mas não se identificam totalmente. Existe uma história de cada
um desses saberes que mostra suas origens, suas especificidades, embora em
alguns momentos eles tenham se mesclado, se identificado.
A expressão geografia
política existe há séculos. Há inúmeros livros dos séculos XVII, XVIII e
XIX com esse título. Mas considera-se que geografia política moderna, pelo
menos tal como a entendemos hoje -- isto é, como um estudo geográfico da
política, ou como o estudo das relações entre espaço e poder -- nasceu com a
obra Politische Geographie [Geografia Política], de Friedrich RATZEL,
publicada em 1897. Ratzel, na verdade, não criou o rótulo "geografia
política"; ela apenas redefiniu o seu conteúdo, apontando para o que seria
um verdadeiro estudo geográfico da política, uma concepção de política que
muito deve à leitura de Maquiavel. Antes dele era comum encontrar em obras com
esse título a descrição dos rios ou montanhas de tal ou qual Estado - ou seja,
qualquer fenômeno ligado ao Estado (o ser político por excelência) era tido
como assunto de geografia política. Ratzel mostrou que o estudo da geografia
política só vai se preocupar com o meio ambiente - as características
"naturais" do território, por exemplo (localização, formato,
proximidade do mar, etc.) - desde que isso tenha relações com a vida política.
Ele procurou estabelecer uma série de temas pertinentes à geografia política,
que continuam a ser atuais (embora outros tenham surgido posteriormente): o que
é o Estado e quais as suas relações com o território, soberania e território, o
que é política territorial (uma expressão criada por ele), a questão das
fronteiras, o que significa uma grande potência mundial, etc.
Em síntese, esse geógrafo
alemão não foi o primeiro autor a empregar esse rótulo, geografia política, nem
mesmo o primeiro a escrever sobre o assunto - a questão do espaço geográfico na
política. Essa análise a respeito da dimensão geográfica ou espacial da
política é bastante antiga. Podemos encontrá-la em Aristóteles, em Maquiavel,
em Montesquieu e em inúmeros outros filósolos da antiguidade, da Idade Média ou
da época moderna. Mas normalmente essa preocupação com a dimensão espacial da
política -- tal como, por exemplo, a respeito do tamanho e da localização do
território de uma cidade-Estado, em Aristóteles; ou sobre a localização e a
defesa da fortaleza do príncipe, em Maquiavel; ou a ênfase na importância da
geografia (física e principalmente humana) para a compreensão do "espírito
das Leis" de cada Estado, em Montesquieu -- era algo que surgia en
passant, como um aspecto meio secundário da realidade, pois o essencial era
entender a natureza do Estado ou das Leis, os tipos de governo ou as maneiras
de alcançar e exercer eficazmente o poder. Com Ratzel inicia-se um estudo
sistemático da dimensão geográfica da política, no qual a espacialidade ou a
territorialidade do Estado era o principal objeto de preocupações. E com
Ratzel a própria expressão "geografia política", que era comumente
empregada nos estudos enciclopédicos dos séculos XVII, XVIII e mesmo XIX (as
informações sobre tal ou qual Estado: sua população, contornos territoriais,
rios, montanhas, climas, cidades principais, etc.), ganha um novo significado.
Ela passa a ser entendida como o estudo geográfico ou espacial da política e
não mais como um estudo genérico (em "todas" as suas características)
dos Estados ou países.
A palavra geopolítica,
por sua vez, foi criada no início do século XX, mais precisamente em 1905, num
artigo denominado "As grandes potências", escrito pelo jurista sueco
Rudolf KJELLÉN. (Mas atenção: a palavra geopolítica é que foi criada por
Kjellén, pois não há dúvida que essa temática é bem mais antiga, ou seja, as
grandes preocupações geopolíticas não surgiram no início do século XX
(preocupações sobre o que é e quem é uma potência mundial, como se dá a disputa
mundial pelo poder entre os Estados, que estratégias seriam adequadas para tal
ou qual Estado tornar-se a potência regional nesta ou naquela parte do globo,
etc.). Isto é, já existia anteriormente juízos ou análises a respeito do
poderio de cada Estado, das grandes potências mundiais ou regionais, com a
importância ou o uso do espaço geográfico na guerra ou no exercício do poder
estatal.
Normalmente se afirma --
em quase todas as obras sobre "história da geopolítica" -- que os
geopolíticos clássicos, ou os "grandes nomes da geopolítica", foram
H.J. MacKinder, A.T. Mahan, R. Kjellén e K. Haushofer. Desses quatro nomes,
dois deles (o geógrafo inglês Mackinder e o almirante norte-americano Mahan)
tiveram as suas principais obras publicadas antes da criação dessa
palavra geopolítica por Kjellén e, dessa forma, nunca fizeram uso dela.
O outro autor, o general alemão Karl Haushofer, foi na realidade quem
popularizou a geopolítica, devido às circunstâncias (ligações, embora
problemáticas, com o nazismo e possível contribuição indireta para a obra Mein
Kampf, de Hitler), tornando-a tristemente famosa nos anos 1930 e 40, em
especial através da sua Revista de Geopolítica [Zeitschrift für Geopolitik],
editada em Munique de 1924 a 44 e com uma tiragem mensal que começou com 3 mil
e chegou a atingir a marca dos 30 mil exemplares, algo bastante expressivo para
a época.
A geopolítica, enfim,
conheceu um período de grande expansão no pré-guerra, na primeira metade do
século XX, tendo se eclipsado -- ou melhor, ficado no ostracismo -- depois de
1945. Ela sempre se preocupou com a chamada escala macro ou
continental/planetária: a questão da disputa do poder mundial, que Estado (e
por quê) é uma grande potência, qual a melhor estratégia espacial para se
atingir esse status, etc. Existiram "escolas (nacionais) de
geopolítica", em especial dos anos 1920 até os anos 1970, em algumas
partes do mundo, inclusive no Brasil. Não escola no sentido físico (prédio e
salas de aula), mas sim no sentido de corrente de pensamento, de autores --
mesmo que um tenha vivido distante do outro, no espaço ou às vezes até no tempo
-- com uma certa identificação: no caso da geopolítica brasileira, ela
consistiu principalmente no desenvolvimento de um projeto ("Brasil,
grande potência") que se expressa como uma estratégia (geo)política e
militar com uma clara dimensão espacial. A natureza pragmática, utilitarista (e
para o Estado, único agente visto como legítimo) ou de "saber
aplicável" sempre foi uma tônica marcante na geopolítica. Ela nunca se
preocupou em firmar-se como um (mero?) "conhecimento" da realidade e
sim como um "instrumento de ação", um guia para a atuação de tal ou
qual Estado.
A partir de meados dos
anos 1970 a geopolítica sai do ostracismo. Ela volta a ser novamente estudada
(a bem a verdade, ela nunca deixou de ser, mas de 1945 até por volta de 1975
esteve confinada em pequenos círculos, em especial militares). Só que agora, ao
invés de ser vista como "uma ciência" (como pretendia Kjellén) ou
como "uma técnica/arte a serviço do Estado" (como advogavam inúmeros
geopolíticos, inclusive Haushofer), ela é cada vez mais entendida como "um
campo de estudos", uma área interdisciplinar enfim (tal como, por exemplo,
a questão ambiental). Em várias parte do globo criaram-se -- ou estão sendo
criados -- institutos de estudos geopolíticos e/ou estratégicos, que via de
regra congregam inúmeros especialistas: cientistas políticos, geógrafos,
historiadores, militares ou teóricos estrategistas, sociólogos e, como não
podia deixar de ser (na medida em que a "guerra" tecnológica-comercial
hoje é mais importante que a militar) até mesmo economistas.
Enfim, a palavra
geopolítica não é uma simples contração de geografia política, como pensam
alguns, mas sim algo que diz respeito às disputas de poder no espaço mundial e
que, como a noção de PODER já o diz (poder implica em dominação, via Estado ou
não, em relações de assimetria enfim, que podem ser culturais, sexuais,
econômicas, repressivas e/ou militares, etc.), não é exclusivo da geografia.
(Embora também seja algo por ela estudado). A geografia política, dessa forma,
também se ocupa da geopolítica, embora seja uma ciência (ou melhor, uma
modalidade da ciência geográfica) que estuda vários outros temas ou problemas.
Exemplificando, podemos lembrar que a geografia também leva em conta a questão
ambiental, embora esta não seja uma temática exclusivamente geográfica (outras
ciências -- tais como a biologia, a geologia, a antropologia, a história, etc.
-- também abordam essa questão). Mas a geografia -- da mesma forma que as
outras ciências mencionadas -- não se identifica exclusivamente com essa
questão, pois ela também procura explicar outras temáticas que não são
rigorosamente ambientais tais como, por exemplo, a história do pensamento
geográfico, a geografia eleitoral, os métodos cartográficos, etc.
Esquematizando, podemos dizer que existiram ou
existem várias interpretações diferentes sobre o que é geopolítica e as suas
relações com a geografia política. Vamos resumir essas interpretações, que
variaram muito no espaço e no tempo, em quatro visões:
1. "A geopolítica seria dinâmica (como um
filme) e a geografia política estática (como uma fotografia)". Esta foi a
interpretação de inúmeros geopolíticos anteriores à Segunda Guerra Mundial,
dentre os quais, podemos mencionar Kjellén, Haushofer e vários outros
colaboradores da Revista de Geopolítica, além do general Golbery do Couto e
Silva e inúmeros outros militares no Brasil. Segundo eles, a geopolítica seria
uma "nova ciência" (ou técnica, ou arte) que se ocuparia da política
ao nível geográfico, mas com uma abordagem diferente da geografia: ela seria
"mais dinâmica" e voltada principalmente para a ação. Eles viam a
geografia como uma disciplina tradicional e descritiva e diziam que nela apenas
colhiam algumas informações (sobre relevo, distâncias, latitude e longitude,
características territoriais ou marítimas, populações e economias, etc.), mas
que fundamentalmente estavam construindo um outro saber, que na realidade seria
mais do que uma ciência ou um mero saber, seria um instrumento imprescindível
para a estratégia, a atuação político/espacial do Estado. Como se percebe, foi
uma visão adequada ao seu momento histórico -- não podemos esquecer que o mundo
na primeira metade do século XX, antes da Grande Guerra, vivia uma ordem
multipolar conflituosa, com uma situação de guerra latente entre as grandes
potências mundiais -- e à legitimação da prática de quem fazia geopolítica
naquele momento. Ela também foi coeva e tributária de todo um clima intelectual
europeu -- especialmente alemão -- da época, que fustigava o conhecimento
científico ( a "ciência real", que era contraposta a uma
"ciência ideal" ou "novo saber", que deveria contribuir
para um "mundo melhor") pela sua pretensa "desconsideração pela
vida concreta, pelas emoções, pelos sentimentos".
2. "A geopolítica seria ideológica (um
instrumento do nazi-fascismo ou dos Estados totalitários) e a geografia
política seria uma ciência". Esta foi a interpretação de alguns poucos
geógrafos nos anos 1930 e 40 (por exemplo: A. Hettner e Leo Waibel) e da quase
totalidade deles (e também de inúmeros outros cientistas sociais) no
pós-guerra. Um nome bastante representativo desta visão foi Pierre George,
talvez o geógrafo francês mais conhecido dos anos 50 aos 70, que afirmava que a
geopolítica seria uma "pseudo-ciência", uma caricatura da geografia
política. Esta visão foi praticamente uma reação àquela anterior, que
predominou anteriormente, no período pré-Segunda Guerra Mundial. Como toda
forte reação, ela caminhou para o lado extremo do pêndulo, desclassificando
completamente a geopolítica (da qual "nada se aproveita", nos dizeres
de inúmeros autores dos anos 50 e 60) e até mesmo se recusando a explicá-la de
forma mais rigorosa.
3. "A geopolítica seria a verdadeira (ou
fundamental) geografia". Esta foi a interpretação que Yves Lacoste
inaugurou com o seu famoso livro-panfleto A Geografia - isso serve, em
primeiro lugar, para fazer a guerra, de 1976, e que serviu como ideário
para a revista Hérodote - revue de géographie et de géopolitique. Nessa
visão, a geografia de verdade (a "essencial" ou fundamental) não
teria surgido no século XIX com Humboldt e Ritter, mas sim na antiguidade,
junto com o advento dos primeiro mapas. O que teria surgido no século XIX seria
apenas a "geografia dos professores", a geografia acadêmica e que
basicamente estaria preocupada em esconder ou encobrir, como uma "cortina
de fumaça", a importância estratégica da verdadeira geografia, da
geopolítica enfim. A geopolítica -- ou geografia dos Estados maiores, ou
geografia fundamental -- existiria desde a antiguidade na estratégia espacial
das cidades-estados, de Alexandre o Grande, por exemplo, de Heródoto com os
seus escritos (obra e autor que, nessa leitura enviesada, teria sido um
"representante do imperialismo ateniense"). Esta interpretação teve
um certo fôlego -- ou melhor, foi reproduzida, normalmente por estudantes e de
forma acrítica -- no final dos anos 1970 e nos anos 80, mas acabou ficando
confinada a um pequeno grupo de geógrafos franceses que, inclusive, em grande
parte se afastaram do restante da comunidade geográfica (ou mesmo científica)
daquele país. Existe uma visível falta de evidências nessa tese -- de
comprovações, e mesmo de possibilidade de ser testada empiricamente (inclusive
via documentos históricos) -- e, na realidade, ela surgiu mais como uma forma
de revalorizar a geografia, tão questionada pelos revoltosos do maio de 1968,
tentando mostrar a sua importância estratégica e militar.
4. "A geopolítica (hoje) seria uma área ou
campo de estudos interdisciplinar". Esta interpretação começa a predominar
a partir do final dos anos 1980, sendo quase um consenso nos dias atuais. Não
se trata tanto do que foi a geopolítica e sim do que ela representa atualmente.
E mesmo se analisarmos quem fez geopolítica, os "grandes nomes" que
teriam contribuído para desenvolver esse saber, vamos concluir que eles nunca
provieram de uma única área do conhecimento: houve juristas (por exemplo,
Kjellén), geógrafos (Mackinder), militares (Mahan, Haushofer) e vários outros
oriundos da história, da ciência política, da economia, da engenharia, etc. Não
tem nenhum sentido advogar o monopólio desse tipo de estudo -- seria o mesmo
que pretender deter a exclusividade das pesquisas ambientais! --, já que com
isso estaríamos desconhecendo a realidade, o que já se fez e o que vem sendo
feito na prática. Existem trabalhos recentes sobre geopolítica, alguns ótimos,
oriundos de geógrafos, de cientistas políticos (Luttuak...), de historiadores
(H. Kissinger, P. Kennedy...), de sociólogos (Huntington...)de militares, etc.
E ninguém pode imaginar seriamente que num instituto ou centro de estudos
estratégicos e/ou geopolíticos -- onde se pesquise os rumos do Brasil (ou de
qualquer outro Estado-nação, ou mesmo de um partido político) no século XXI, as
possibilidades de confrontos ou de crises político-diplomáticas ou econômicas,
as estratégias para se tornar hegemônico no (sub)continente, para ocupar
racionalmente a Amazônia, etc. -- devam existir apenas geógrafos, ou apenas
militares, ou apenas economistas ou juristas. Mais uma vez podemos fazer aqui
uma ligação com o nosso tempo, com o clima intelectual do final do século XX e
inícios do XXI. A palavra de ordem hoje é interdisciplinaridade (ou até
transdisciplinaridade), pois o real nunca é convenientemente explicado por
apenas uma abordagem ou uma ciência específica. O conhecimento da realidade,
enfim, e mesmo a atuação nela com vistas a um mundo mais justo, é algo muito
mais importante do que as disputas corporativistas.
Texto escrito por
José Wiliam Vasentini
Fonte: http://www.geocritica.com.br/geopolitica.htm