Leitura complementar
Autor: José William Vesentini
O que é uma ordem [geopolítica] mundial? Existe
atualmente uma nova ordem ou, como sugerem alguns, uma desordem? Quais são os
traços marcantes nesta nova (des)ordem internacional?
Esse tema é clássico na geografia política, na
geopolítica, na ciência política e nos estudos de relações internacionais. Um
dos mais importantes (pelo número de citações que recebeu e ainda recebe)
teóricos a abordar esse tema foi o geógrafo e geopolítico inglês Halford J.
MacKinder, que produziu várias obras sobre o assunto no final do século XIX e
no início do século XX. A idéia de uma ordem mundial pressupõe logicamente um
espaço mundial unificado, algo que só ocorreu a partir da expansão marítimo-comercial
européia (e capitalista) dos séculos XV e XVI. Daí os autores clássicos, em
especial aqueles do século XIX, terem cunhado a expressão "grande
potência" ou "potência mundial", indissociavelmente ligada à
idéia de ordem mundial. Esta normalmente é vista como uma situação de
equilíbrio (sempre instável ou provisório) de forças entre os Estados. (Afinal
é o Estado quem atua nas relações internacionais e executa tanto a diplomacia
quanto a guerra).
E como esses atores privilegiados no cenário
global, os Estados, são equivalentes apenas na teoria -- pois há alguns
fraquíssimos, em termos de economia, de população e de poderio militar, e
alguns poucos outros extremamente fortes --, o conceito de potências (médias ou
regionais e principalmente grandes ou mundiais) é essencial na medida em que
expressa algo que ajuda a definir ou a estabilizar a (des)ordem mundial. Como
assinalaram Norberto BOBBIO e Outros (Dicionário de Política, editora
Universidade de Brasília, 1986, pp.1089-1098), cada Estado possui a sua soberania
ou poder supremo no interior de seu território, não estando portanto submetido
a nenhuma outra autoridade supraestatal, o que em tese redundaria numa espécie
de "anarquia internacional". Mas a existência das grandes potências e
a própria hierarquia entre os Estados introduz um elemento estabilizador, uma
"ordem" afinal, nessa situação em que não há um poder global ou
universal, isto é, acima das soberanias estatais.
É exatamente essa hierarquia que vai dos
"grandes Estados" -- a(s) grande(s) potência(s) -- até os
"pequenos", esse sistema de países onde na prática há o exercício do
poder pela diplomacia (ou, no caso extremo, pela força militar) e pelas
relações cotidianas (comerciais, financeiras, culturais...), o que se
convencionou denominar ordem mundial. Por esse motivo, via de regra se define
uma ordem mundial pela presença de uma ou mais grandes potências mundiais:
ordem monopolar, bipolar, tripolar, pentapolar, multipolar etc. Como podemos
perceber, não se avança muito quando se nega a idéia de uma (nova) ordem e se
enfatiza o termo desordem, pois toda ordem mundial é instável e plena de
conflitos e de guerras. Estas normalmente, salvo raras exceções, são
explicáveis pela lógica que preside a ordem mundial e, portanto, não a denegam.
Podemos dizer, assim, que o conceito de ordem mundial não é positivista (no
sentido de ordem = ausência de contestações e de conflitos) e sim, na falta de
um conceito melhor, dialético (no sentido de ordem = algo sempre instável e na
qual as disparidades, as tensões e os conflitos são "normais" ou
inerentes).
A atual ordem internacional, nascida com a ruína da
bipolaridade -- que foi o mundo da guerra fria e das duas superpotências, que
existiu de 1945 até 1989-91--, ainda suscita inúmeras controvérsias e costuma
ser definida ora como multipolar (por alguns, provavelmente a maioria dos
especialistas), ora como monopolar (por outros) ou ainda como uni-multipolar
(por Huntington). Aqueles que advogam a mono ou unipolaridade argumentam que
existe uma única superpotência militar, os Estados Unidos, e que a sua
hegemonia planetária é incontestável após o final da União Soviética. E aqueles
que defendem a idéia de uma multipolaridade não enfatizam tanto o poderio
militar e sim o econômico, que consideram como o mais importante nos dias
atuais. Eles sustentam que a União Européia já é uma potência econômica tão ou
até mais importante que os EUA -- e continua se expandir -- e tanto o Japão
(que logo deverá superar a sua crise) quanto a China (a economia que mais
cresce no mundo desde os anos 1990) também são economias importantíssimas a
nível planetário. Além disso, raciocinam, a Rússia ainda é uma superpotência
militar, apesar de sua economia fragilizada; a China vem modernizando
rapidamente o seu poderio militar; e as forças armadas da Europa, em especial
as da Alemanha, França, Itália e Reino Unido, tendem a se unificar com o
desenrolar da integração continental.
Até mesmo os momentos de crise (Guerra do Golfo, em
1991, conflitos na Bósnia e no Kosovo, em 1993 e 1999, a luta contra o
terrorismo, em 2001, e a ocupação do Iraque, em 2003) são vistos sob diferentes
perpectivas por ambos os lados. Os que insistem na monopolaridade pensam que
essas crises exemplificam a hegemonia absoluta e sem concorrentes dos Estados
Unidos, enquando que os que advogam a multipolaridade explicam que essa
superpotência em todos esses momentos críticos necessitou do imprescindível
apoio da Europa, em primeiro lugar, e até mesmo da ONU, além de ter feito
inúmeras concessões à Rússia e à China em troca do seu suporte direto ou
indireto nesses bombardeios contra o Iraque, contra a Sérvia e contra o
Afeganistão.
Mas, independentemente do fato de ser uni ou
multipolar -- ou talvez uni-multipolar, uma fórmula conciliatória que admite
uma monopolaridade militar (mesmo que provisória) e uma multipolaridade
econômica --, a nova ordem mundial possui outros importantes traços
característicos: o avançar da Terceira Revolução Industrial, ou revolução
técnico-científica, e de uma globalização capitalista junto com uma nova
regionalização que lhe é complementar, isto é, a formação de "blocos"
ou mercados regionais. A revolução técnico-científica redefine o mercado de
trabalho (esvaziando os setores secundário e primário e ao mesmo tempo exigindo
cada vez mais uma mão-de-obra qualificada e flexível) e reorganiza ou
(re)produz o espaço geográfico (com novos fatores sendo determinante para a
alocação de indústrias: não mais matérias primas e sim telecomunicações e/ou
força de trabalho qualificada, dentre outros). Ela é condição indispensável
para a globalização na medida em que esta não existe sem as novas tecnologias
de informática e de telecomunicações. Ela influi até mesmo na guerra, pois
permite a construção de armas "inteligentes", que destroem alvos específicos
sem ocasionar matanças indiscriminadas (e são mais precisas que as armas de
destruição em massa, o que significa que não é mais necessário o transporte de
grande quantidade delas) e torna as informações algo estratégico para a
supremacia militar. Esta última deixa de ser ligada ao tamanho da população ou
mesmo à quantidade de soldados (existe uma tendência no sentido de haver menos
militares, só que com maior qualificação) e passa a depender da economia
moderna, da tecnologia avançada.
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